De Avatar a Pocahontas: eu vejo Quinhentismo no cinema

Talvez você ainda esteja se perguntando: Por que essa doida dessa professora quando pensa em Quinhentismo diz que pensa em Avatar junto? O que é que cinema em computação gráfica e um bando de coisa escrita em 1500 e lá foi chumbinho têm a ver?

Olhando por esse lado, realmente uma coisa não tem nada a ver com a outra. Mas, porém, contudo, entretanto, todavia, não obstante… A premissa da narração de Avatar não conta a história de uma expedição militar para um planeta exótico, de natureza tão bela quanto perigosa, habitado por um povo absolutamente diferente de tudo o que a cultura humana high-tech é?

Pergunta retórica (só pra revisar)!

Pois é. É por isso que quando em penso em Avatar em penso em Quinhentismo, em todo o contexto de interação dos colonizadores e dos gentios. Para quem ainda não acostumou com esta palavra, os povos gentios são os povos nativos de um lugar. Pode-se falar ainda em silvícolas, que são habitantes das selvas. Em Avatar eu reconheço até um equivalente dos padres jesuítas e eles são justamente os cientistas (e o fuzileiro) que usam os corpos híbridos de humano e na’vi para poderem conviver com o povo e aprender sobre ele.

Eu sei que eu viajo, mas segue a minha versão que eu acho que você vai ver o que eu vejo também.

Em Avatar, Um lugar chamado Pandora é invadido por humanos porque é uma terra rica em um Unobtainium, um recurso natural valioso. Como sua uma natureza muito perigosa (e como a própria viagem para lá requer um preparo deste tipo) a equipe de exploração deste recurso emprega ex-militares. Um entrave para a exploração do Unobtainium são os nativos, os na’vi, que povoam justamente a área onde está sua maior fonte. Para tentar uma saída diplomática para a questão (em outras palavras: para convencer os na’vi a sair do caminho e deixar os humanos enriquecerem em paz), os exploradores autorizam que grupos de cientistas convivam com os nativos e tentem ensinar a eles como eles devem ser (na perspectiva dos humanos). Os na’vi percebem que os humanos se comportam com eles com superioridade, tratando os na’vi como se eles precisassem dos humanos e dos conhecimentos que eles oferecem. E, por isso, e por estes cientistas não conhecerem a natureza e enfrentarem sua adversidade como eles, os na’vi os desprezam. A coisa só muda com a chegada de Jake Sully, um soldado que é infiltrado entre os cientistas com a missão clara de aprender tudo sobre os na’vi e reportar ao chefe da missão extrativista. A partir daí o grande conflito da história deixa de ser o dos humanos contra os na’vi e passa ser os conflitos internos de Jake dividido, entre o modo de ver o mundo e os interesses humanos e o modo de ver o mundo e os interesses dos na’vi, que ele passa a conhecer e a admirar.

Agora vamos fazer o seguinte. Dê um ctrl+c no parágrafo acima, a partir da palavra Pandora, e faça um ctrl+v num documento em branco do Word. Depois dê ctrl+u e mande o Word localizar e substituir as seguintes palavras: Pandora (substituir por Brasil), humanos (por portugueses, Unobtainium (por ouro ou pau-brasil), cientistas (por jesuítas) e na’vi (por índios). Agora releia o parágrafo. Eu não disse que tem tudo a ver com Quinhentismo?

Aproveitando o momento para revisar a questão, veja que não podemos falar que James Cameron, o diretor e criador do roteiro inicial do filme, está falando sobre a colonização do Brasil. Mas que eu, como leitora, com meus conhecimentos prévios, comparo a realidade da ficção com a realidade histórica. Provavelmente até esse momento você tinha passado pelo filme sem ter feito esta leitura, não é?

Outra coisa que eu acho muito quinhentista em Avatar é a presença sutil do que eu reconheço como o produzir a literatura quinhentista. No filme, Jake grava vários vídeos, como um diário, em que ele vai relatando tudo o que aprendeu sobre os na’vi. Esses vídeos são enviados para o capitão dele, que precisa das informações para, não havendo acordo com os na’vi, preparar a melhor estratégia de ataque. A coisa lindinha (para uma doida como eu, claro) é que o diário foi uma das formas, um dos gêneros textuais pelos quais a literatura de informação se expressou.

Mas a literatura de informação não era enviada para fora do Brasil? E o chefe de Jake não está em Pandora?

Muito bem!! Tava prestando atenção, né, pessoa? Realmente essa é uma diferença, mas a gente pode fazer um pouquinho de vista grossa. Afinal, o chefe de Jake não está com os na’vi (se não ninguém precisava contar pra ele como é lá – dã!!), então não importa muito a distância em que ele está daquele povo, ele não sabe como as coisas são e precisa das informações.

Já começo a ouvir: “E tem literatura de catequese no filme, Bianca?”

Aí você tá querendo demais de Hollywood, meu bem! O máximo que dá pra chegar perto de uma alusão a isso são os momentos em que os cientistas com os avatares interagem oralmente com os na’vi e vão mostrando como os humanos pensam o mundo (querendo, no fim das contas, que os na’vi passem a pensar assim também). Mas não tem nada parecido com poesia ou teatro feito pra índio ver.

Pra fechar o post, acho que vale lembrar que o ponto de vista dos humanos em Avatar, assim como o da maior parte dos escritos da literatura de informação (como os textos de Pero de Magalhães Gândavo, o cara do f-l-r – não têm fé, nem lei, nem rei), é etnocêntrico. Vale lembrar: uma ideologia etnocêntrica avalia os grupos sociais pela semelhança ou diferença em relação à própria identidade do avaliador. Num julgamento etnocêntrico, o que parece com o avaliador é bom, o que é diferente dele, é ruim, bestial, selvagem, bárbaro.

Hollywood fez muitos outros filmes em que estes contatos entre um invasor/colonizador e os nativos são apresentados segundo um ponto de vista edênico. É o caso de dois clássicos. Tá, um é clássico e o outro não, mas enfim, pra mim é clássico. Clássico Disney, mas clássico. Estou falando de Dança com Lobos e de Pocahontas.

Sente o que era Kevin Costner com menos de quarenta! Canastrão, mas charmosíssimo.

Pocahontas e seu alisamento by Mauro Freire, com direito a cabelo que não embaraça, não importa o diabo do vento que dê! Pode isso, Arnaldo? 

Pra lembrar, o ponto de vista é edênico quando se apresenta a terra e a gente como se fossem remanescentes do jardim do Éden, o paraíso bíblico de onde Adão e Eva foram expulsos. É o tal do “moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”, sabe? Em Dança com Lobos, essa visão edênica é a do próprio protagonista, o tenente John Dunbar. No filme ele pede, voluntariamente, para ser enviado à fronteira do Oeste, viver no meio do nada, em contato com a natureza (e com os índios, com quem ele faz amizade). Tudo o que ele vê e o que ele vive ele escreve e desenha num diário (e tome literatura de informação, de novo). Eu tenho memórias muito carinhosas deste filme, que levou quatrocentos quilos de Oscar pra casa e foi dirigido pelo próprio Kevin Costner. Se você puder, assista – apesar das três horas de duração (é longa-metragem mesmo!) vale muito a pena.

Em Pocahontas a visão edênica está na própria obra (e não é à toa que Colors of the Wind é A canção e A cena de Pocahontas). Ou você acha que Pocahontas (que é um personagem histórico) era uma princesa Disney saltitante com aquele alisamento by Mauro Freire sem um nozinho naquele cabelo, só pra dar mais raiva!), pulando no meio da floresta sem derramar uma gota de suor e com dentes brancos nível propaganda da Oral-B ou equivalente? Entenda-se por princesa Disney não apenas linda, mas também inteligente, generosa, corajosa, enfim, aquele blablablá que a gente conhece.

Bom, é isso. Beijos e boa prova!

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